quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Há Espaço hoje para o Jusnaturalismo?




JUSNATURALISMO



Formas da doutrina do direito natural



O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural", ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado [direito positivo]. Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O jusnaturalismo é por isso uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, aquele estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também elas com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, especifica, portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. Todas partilham, porém, da idéia comum de um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, diante de cujo poder fixam um limite intransponível: as normas jurídicas e a atividade política dos Estados, das sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como este for concebido, são consideradas pelas doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo nessa condição ser desobedecidas pelos cidadãos.



Jusnaturalismo antigo e Jusnaturalismo medieval



A figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles, converte-se como que num símbolo disso: ela se recusa a obedecer as ordens do rei, porque julga que, sendo ordens da autoridade política, não se podem sobrepor àquelas outras que são eternas, às ordens dos deuses. A afirmação da existência de algo "justo por natureza" que se contrapõe ao "justo por lei" é depois completada por vários sofistas, que já desde então entendem o "justo por natureza" de diversas maneiras, com conseqüências políticas diferentes em cada caso. Conhecemos a sua doutrina sobre este ponto, sobretudo pela divulgação que Cícero dela fez em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas. Numa célebre passagem do seu livro De Republica, Cícero defende a existência de uma lei "verdadeira", conforme a razão, imutável e eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a própria natureza humana. Reproduzido e aceito por um dos padres da Igreja, Lactâncio, este excerto influenciou poderosamente o pensamento cristão de cultura latina, que, tal como já havia feito o de cultura grega no século III, acolheu a idéia de um direito natural ditado pela razão. Isto, porém, suscitou entre os padres da Igreja graves problemas de ordem teológica, tanto por causa da dificuldade de explicar a coexistência de uma lei natural com uma lei revelada, quanto porque a aceitação da existência de uma lei moral, autônoma no homem, punha em causa a necessidade da graça. Estas dificuldades afligiram, sobretudo o pensamento de Santo Agostinho, que, em épocas diferentes, assumiu a tal respeito atitudes muito diversas. É característica do pensamento medieval a aceitação indiscriminada do jusnaturalismo em todas as suas versões, sem consciência da recíproca incompatibilidade existente entre elas. Ao lado da versão naturalista de Ulpiano e da versão racionalista de Cícero [bem como da que se devia a uma má interpretação de um diálogo tardio de Platão, de uma justiça imanente a todo universo como princípio da sua harmonia], a Idade Média desenvolveu a doutrina de um direito natural que se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés e com o Evangelho. Esta foi, sobretudo obra de Graciano e dos seus comentaristas. Quem pôs fim a esta confusão de idéias foi São Tomás de Aquino [século XIII], que entendeu como "lei natural" aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governante do universo, que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto racional... Tomado tradicional, ele foi e ainda é, embora não tenha sido nunca declarado pela Igreja matéria de fé, o centro da doutrina moral e jurídico-politica católica. Contudo, dentro da teologia da Idade Média tardia, ele foi asperamente impugnado pelas correntes voluntaristas, que tiveram seu maior expoente em Guilherme de Ockham [século XIV]. Para estas correntes, o direito natural é, sem dúvida, ditado pela razão, mas a razão não é senão o meio que notifica ao homem a vontade de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o direito natural com base no seu arbítrio; uma tese que foi reassumida e desenvolvida, no inicio, pela Reforma protestante.

O jusnaturalismo despontou de novo depois da 2a Guerra Mundial, como reação ao estatismo dos regimes totalitários. Em grande parte, o fenômeno se verificou ainda no âmbito da cultura católica; mas também nos ambientes protestantes alemães e em medida bastante notável no mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo e, sobretudo como dique e limite ao poder do Estado. E típica a tal respeito a posição tomada por um dos maiores juristas alemães, Radbruch. A forma em que hoje o jusnaturalismo parece ainda poder ter vitalidade é aquela em que ele se aproxima das doutrinas sociológicas e "realistas" do direito. Estas doutrinas rejeitam o positivismo jurídico por causa do seu formalismo, ou seja, pelo mesmo defeito que o historicismo romântico e idealista imputava ao jusnaturalismo. O jusnaturalismo tem hoje diante de si unia função, talvez arriscada, mas que pode ser fecunda. O problema dos fins e dos limites desta função abrange, todavia, o problema da relação entre o juiz e a lei e, conseqüentemente, também o problema das relações entre o poder legislativo e o poder judiciário, na medida em que admitir que o juiz possa invocar um "direito natural", além de poder comprometer a certeza do direito, atribui aos órgãos judiciários o poder, em resumo, de criar o direito.


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